quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

TERTÚLIA NATIVA – CORDEL, QUE BELO CARNAVAL



 
As grandes oscilações da personalidade
 observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos.
Na da inteligência, elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.
(Gustave Le Bom)



Amigas e Amigos,

Está terminando mais um Carnaval. Enquanto no Rio de Janeiro fica a expectativa de que, no próximo ano, mais foliões se divertirão e divertirão expectadores (e telespectadores), em São Paulo fica a dúvida se já no próximo ano estará entendido o verdadeiro espírito dessa festa.

         No Rio de Janeiro, a Unidos da Tijuca – Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Tijuca – foi a grande campeã, com uma bonita homenagem a Luís Gonzaga. Salgueiro e Vila Isabel, por detalhe, ocupam o segundo e terceiro lugar. Esse detalhe, percebido por alguns jurados, poderia ter levado a outra classificação no resultado final da apuração sem que houvesse injustiça para quem aprecia um bom desfile.  

A ousadia da Unidos da Tijuca foi  homenagear mestre Lua sem contar sua história, mas trazendo a sua nobreza para a avenida na forma de reverência ao Rei do Baião por outros “reis”. A literatura de cordel ficou por conta do Salgueiro, que trouxe sua “Furiosa” fazendo o samba lembrar xote e baião, o que seu principal casal de mestre-sala e porta-bandeira transformou em forró na avenida, com direito a triângulo na coreografia. A Vila Isabel, que ganhou o prêmio “Estandarte de Ouro” de melhor escola, trouxe o “Canto livre de Angola”, lembrando o seu enredo inesquecível de “Kizomba, a Festa da Raça”. Vale registrar que a “paradinha” da bateria da Mangueira foi a grande revolução do desfile de 2012: o silêncio da bateria – mais de dois minutos – e do carro de som era substituído por um carro de bambas, responsável por sustentar o samba enredo por um longo período – homenagem ao “Cacique de Ramos”, sem esquecer o “Bafo da Onça” –, enchendo de emoção um desfile que será lembrado por muito tempo.

         O destaque negativo do Carnaval ficou para a apuração do desfile principal de São Paulo, marcado por aberrações que poderiam ser associadas a truculências medievais. A continuidade dos fatos dá um toque de transgressão da ordem de forma surreal, pois o incitamento a violência propiciado por lideranças de escolas, apesar de documentado, é tido como não acontecido por suas diretorias. Além disso, o integrante da diretoria de uma escola (estava, como consentimento de seus pares, na área destinada para essas pessoas) que invadiu, agrediu, rasgou documentos e sabe-se lá que mais aprontou, é declarado como não integrante da escola e, assim que detido pela polícia, já tem um advogado de defesa pronto para transformá-lo em um santinho arrependido. Para coroar o inesquecível Carnaval paulistano, o prefeito transforma o assunto em oportuno fato político, anunciando com bravatas medidas que, muito provavelmente, poderão render votos, mas em nada melhorarão a precária situação da festa momesca em Sampa.  Até porque o corporativismo das diretorias de escola – que em São Paulo levaram para a avenida as torcidas organizadas com todas as suas mazelas – tentarão colocar “panos quentes” em toda a orgia da apuração para que tudo continue como dantes. E até os próximos problemas... mas isso não é Carnaval.



         Como o Cordel tomou conta da Sapucaí, a Tertúlia de hoje traz uma bela poesia do saudoso Patativa do Assaré – o poeta, compositor e improvisador cearense Antônio Gonçalves da Silva. Esse poema deu nome a um livro do autor, publicado em 1978.

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CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ
                                  Patativa do Assaré

Poeta, cantô de rua, / Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua, / Que eu canto o sertão que é meu.
Se aí você teve estudo, / Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá / Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí, / Cante lá, que eu canto cá.

Você teve inducação, / Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão / Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça, / Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem, / Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida / Sabe o gosto que ela tem.

Pra gente cantá o sertão, / Precisa nele morá,
Tê armoço de fejão / E a janta de mucunzá,
Vivê pobre, sem dinhêro, / Trabaiando o dia intero
Socado dentro do mato, / De apragata currelepe,
Pisando inriba do estrepe, / Brocando a unha-de-gato.

Você é munto ditoso, / Sabe lê, sabe escrevê,
Pois vá cantando o seu gozo, / Que eu canto meu padecê.
Inquanto a felicidade / Você canta na cidade,
Cá no sertão eu infrento / A fome, a dô e a misera.
Pra sê poeta divera, / Precisa tê sofrimento.

Sua rima, inda que seja / Bordada de prata e de ôro,
Para a gente sertaneja / É perdido este tesôro.
Com o seu verso bem feito, / Não canta o sertão dereito,
Porque você não conhece / Nossa vida aperreada.
E a dô só é bem cantada, / Cantada por quem padece.

Só canta o sertão dereito, / Com tudo quanto ele tem,
Quem sempre correu estreito, / Sem proteção de ninguém,
Coberto de precisão / Suportando a privação
Com paciença de Jó, / Puxando o cabo da inxada,
Na quebrada e na chapada, / Moiadinho de suó.

Amigo, não tenha quêxa, / Veja que eu tenho razão
Em lhe dizê que não mêxa / Nas coisa do meu sertão.
Pois, se não sabe o colega / De quá manêra se pega
Num ferro pra trabaiá, / Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mêxo aí, / Cante lá, que eu canto cá.

Repare que a minha vida / É deferente da sua.
A sua rima pulida / Nasceu no salão da rua.
Já eu sou bem deferente, / Meu verso é como a simente
Que nasce inriba do chão; / Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte / Das obra da criação.

Mas porém, eu não invejo / O grande tesôro seu,
Os livro do seu colejo, / Onde você aprendeu.
Pra gente aqui sê poeta / E fazê rima compreta,
Não precisa professô; / Basta vê no mês de maio,
Um poema em cada gaio / E um verso em cada fulô.

Seu verso é uma mistura, / É um tá sarapaté,
Que quem tem pôca leitura / Lê, mais não sabe o que é.
Tem tanta coisa incantada, / Tanta deusa, tanta fada,
Tanto mistéro e condão / E ôtros negoço impossive.
Eu canto as coisa visive / Do meu querido sertão.

Canto as fulô e os abróio / Com todas coisa daqui:
Pra toda parte que eu óio / Vejo um verso se bulí.
Se as vêz andando no vale / Atrás de curá meus male
Quero repará pra serra / Assim que eu óio pra cima,
Vejo um diluve de rima / Caindo inriba da terra.

Mas tudo é rima rastêra / De fruita de jatobá,
De fôia de gamelêra / E fulô de trapiá,
De canto de passarinho / E da poêra do caminho,
Quando a ventania vem, / Pois você já tá ciente:
Nossa vida é deferente / E nosso verso também.

Repare que deferença / Iziste na vida nossa:
Inquanto eu tô na sentença, / Trabaiando em minha roça,
Você lá no seu descanso, / Fuma o seu cigarro manso,
Bem perfumado e sadio; / Já eu, aqui tive a sorte
De fumá cigarro forte / Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro, / Toda vez que qué fumá,
Tira do bôrso um isquêro / Do mais bonito metá.
Eu que não posso com isso, / Puxo por meu artifiço
Arranjado por aqui, / Feito de chifre de gado,
Cheio de argodão queimado, / Boa pedra e bom fuzí.

Sua vida é divirtida / E a minha é grande pená.
Só numa parte de vida / Nóis dois samo bem iguá:
É no dereito sagrado, / Por Jesus abençoado
Pra consolá nosso pranto, / Conheço e não me confundo
Da coisa mió do mundo / Nóis goza do mesmo tanto.

Eu não posso lhe invejá / Nem você invejá eu,
O que Deus lhe deu por lá, / Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié, / Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem / E ninguém pode negá
Que das coisa naturá / Tem ela o que a sua tem.

Aqui findo esta verdade / Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade / Que eu fico no meu sertão.
Já lhe mostrei um ispeio, / Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá. / Por favô, não mexa aqui,
Que eu também não mêxo aí, / Cante lá, que eu canto cá.



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         Para terminar essa Tertúlia, fica a música de Dominguinhos e Anastácia, interpretada por Luís Gonzaga e Gonzaguinha, "Eu só quero um xodó".



         Um grande abraço e até a próxima!

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