Nas sociedades
brilhantes pela inteligência, mas de carácter fraco,
o poder acaba muitas vezes
por cair nas mãos de homens inferiores e audaciosos.
(Gustave Le Bom)
Amigas e Amigos,
Antes do conto de meu saudoso conterrâneo João Simões Lopes
Neto, entretenho-me com o “vídeo game” que tanto sucesso faz entre nossos
Senadores. O brinquedinho eletrônico é objeto de matéria da Rosa Cosata, ontem,
no jornal “O Estado de São Paulo” (
http://www.estadao.com.br),
abordando o questionamento do senador Jarbas Vasconcelos ao presidente da Casa,
José Sarney, a respeito dos nomes dos senadores que permanecem congelados no
painel como se aquele grupo estivesse presente (seria a institucionalização do
senador virtual?).
Conforme a matéria do Estadão, a assessoria da senadora
Marta Suplicy negou que ela tenha congelado as informações do painel nos seis
primeiros dias deste mês de setembro. O que significa essa negação e o porque
dela acontecer me remeteu aquela situação onde um grupo de pessoas reunidas
percebe, repentinamente, um mau cheiro no ar. O primeiro que diz “Não fui
eu!!!” normalmente não vê esse seu veemente argumento resistir a uma
“investigação” mais apurada.
Não deve ser o caso da senadora, mas essa situação do painel
também exala um odor bem desagradável. Segundo consta no jornal a senadora
Suplicy (que utiliza essa marca, “emprestada” em algum momento de seu passado,
como uma espécie de “nome artístico”) não “congelou as informações do painel
eletrônico do plenário do dia 1º ao dia 6 de setembro. Ela teria feito isso,
sim, em "duas outras ocasiões" e não em setembro”.
Aparentemente, a prática é comum, ainda que a senadora
garanta não ter nada a ver com o ocorrido no início deste mês, pois aparece na
matéria do referido jornal que “na queixa feita ao presidente do Senado, José
Sarney, Jarbas lembrou que a prática de congelar os dados do plenário também
ocorria na legislação passada. A diferença é que o procedimento, normalmente
utilizado para "garantir" o quórum do dia seguinte, dependia do aval
de todos os líderes e não apenas de um parlamentar, como ocorreu com a
senadora”.
O que mais chama atenção é que tal prática – com
concordância dos líderes ou, ainda, de todos os presentes – não tem qualquer
sustentação nas normas regimentais. Mas na própria matéria que li, percebi uma
“motivação” para o exercício desse jogo do painel eletrônico, pois “além de
indicar o número dos presentes, os dados do painel também servem para efeito de
pagamento dos senadores”. Logo, parece que o quorum do dia seguinte (ou dos
dias seguintes) pode não garantir – e não garante – a presença dos senadores,
indicados no painel, nas sessões subsequentes, mas garante o pagamento da
remuneração a que o senador não teria direito por estar ausente.
Essa moleza para garantia de remuneração sem esforço, me fez
lembrar que quem gosta de erva tenra é boi velho. Por isso, a Tertúlia Nativa
de hoje abre espaço para o conto “Boi Velho”, publicado no livro “Contos
Gauchescos e Lendas do Sul”.
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O BOI VELHO
João Simões de Lopes Neto
Cuê-pucha!... é bicho mau, o homem!
Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se não é
mesmo!... Olhe, nunca me esqueço dum caso que vi e que me ficou cá na
lembrança, e ficará té eu morrer... como unheiro em lombo de matungo de mulher.
Foi na estância dos Lagoões, duma gente Silva, uns Silvas
mui políticos, sempre metidos em eleições e enredos de qualificações de
votantes.
A estância era como aqui e o arroio como a umas dez quadras;
lá era o banho da família. Fazia uma ponta, tinha um sarandizal e logo era uma
volta forte, como uma meia-lua, onde as areias se amontoavam formando um baixo:
o perau era do lado de lá. O mato aí parecia plantado de propósito: era quase
que pura guabiroba e pitanga, araçá e guabiju; no tempo, o chão coalhava-se de
fruta: era um regalo!
Já vê ... o banheiro não era longe, podia-se bem ir lá de a
pé, mas a família ia sempre de carretão, puxado a bois, uma junta, mui mansos,
governados de regeira por uma das senhoras-donas e tocados com uma rama por
qualquer das crianças.
Eram dois pais da paciência, os dois bois. Um se chamava
Dourado, era baio; o outro, Cabiúna, era preto, com a orelha do lado de laçar,
branca, e uma risca na papada.
Estavam tão mestres naquele piquete, que, quando a família, de manhãzita,
depois da jacuba de leite, pegava a aprontar-se, que a criançada pulava para o
terreiro ainda mastigando um naco de pão e as crioulas apareciam com as toalhas
e por fim as senhoras-donas, quando se gritava pelo carretão, já os bois, havia
muito tempo que estavam encostados no cabeçalho, remoendo muito sossegados,
esperando que qualquer peão os ajoujasse. Assim correram os anos, sempre nesse
mesmo serviço.
Quando entrava o inverno eles eram soltos para o campo, e
ganhavam num rincão mui abrigado, que havia por detrás das casas. Às vezes, um
que outro dia de sol mais quente, eles apareciam ali por perto, como indagando
se havia calor bastante para a gente banhar-se. E mal que os miúdos davam com
eles, saíam a correr e a gritar, numa algazarra de festa para os bichos.
– Olha o Douradol Olha o Cabiúnal Oôch! ... ôch! ...
E algum daqueles traquinas sempre desencovava uma espiga de milho, um pedaço de
abóbora, que os bois tomavam, arreganhando a beiçola lustrosa de baba, e
punham-se a mascar, mui pachorrentos, ali à vista da gurizada risonha.
Pois veja vancê ... Com o andar do tempo aquelas crianças se
tornaram moças e homens feitos, foram-se casando e tendo família, e como quera,
pode-se dizer que houve sempre senhoras-donas e gente miúda para os bois velhos
levarem ao banho do arroio, no carretão.
Um dia, no fim do verão, o Dourado amanheceu morto, mui
inchado e duro: tinha sido picado de cobra.
Ficou pois solito, o Cabiúna; como era mui companheiro do
outro, ali por perto dele andou uns dias pastando, deitando-se, remoendo. Às
vezes esticava a cabeça rara o morto e soltava um mugido... Cá pra mim o boi
velho - uê! tinha caraca grossa nas aspas! - o boi velho berrava de saudades do
companheiro e chamava-o, como no outro tempo, para pastarem juntos, para
beberem juntos, para juntos puxarem o carretão, ...
Que vancê pensa! ... os animais se entendem... eles trocam
língua! ...
Quando o Cabíúna se chegava mui perto do outro e farejava o cheiro ruim, os
urubus abriam-se, num trotão, lambuzados de sangue podre, às vezes meio
engasgados, vomitando pedaços de carniça...
Bichos malditos, estes encarvoados! ...
Pois, como ficou solito o Cabiúna, tiveram que ver outra
junta para o carretão e o boi velho por ali foi ficando.
Porém começou a emagrecer... e tal e qual como uma pessoa penarosa, que gosta
de estar sozinha, assim o carreteiro ganhou o mato, quem sabe, de penaroso.
também...
Um dia de sol quente ele apareceu no terreiro.
Foi um alvoroto da miuçalha.
- Olha o Cabiúna! O Cabiúna! Oôch! Cabiúnal oôch! ...
E vieram à porta as senhoras-donas, já casadas e mães de filhos, e que quando
eram crianças tantas vezes foram levadas pelo Cabiúna; vieram os moços, já
homens, e todos disseram:
- Olha o Cabiúna! Oôch! Oôch! ...
Então, um notou a magreza do boi; outro achou que sim; outro
disse que ele não agüentava o primeiro minuano de maio; e conversa vai,
conversa vem, o primeiro, que era mui golpeado, achou que era melhor matar-se
aquele boi, que tinha caraca grossa nas aspas, que não engordava mais e que
iria morrer atolado no fundo dalguma sanga e... lá se ia então um prejuízo
certo, no couro perdido...
E já gritaram a um peão, que trouxesse o laço; e veio. À mão
no mais o sujeito passou uma volta de meia-cara; o boi cabresteou, como um
cachorro ...
Pertinho estava o carretão, antigão, já meio desconjuntado, com o cabeçalho no
ar, descansando sobre o muchacho.
O peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no
sangradouro do boi manso; quando retirou a mão, já veio nela a golfada
espumenta do sangue do coração...
Houve um silenciozito em toda aquela gente.
O boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se
entendeu que aquilo seria um castigo, algum pregaço de picana, mal dado, por
não estar ainda arrumado. . . - pois vancê creia!-: soprando o sangue em
borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu
uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no cabeçalho do carretão, e meteu
a cabeça, certinho, no lugar da canga, entre os dois canzis ... e ficou
arrumado, esperando que o peão fechasse a brocha e lhe passasse a regeira na
orelha branca...
E ajoelhou ... e caiu ... e morreu...
Os cuscos pegaram a lamber o sangue, por cima dos capins ...
um alçou a perna e verteu em cima... e enquanto o peão chairava a faca para
carnear, um gurizinho, gordote, claro, de cabelos cacheados, que estava comendo
uma munhata, chegou-se para o boi morto e meteu-lhe a fatia na boca, batia-lhe
na aspa e dizia-lhe lia sua língua de trapos:
- Tome, tabiúna! Nó té... Nó fá bila, tabiúna!. . .
E ria-se o inocente, para os grandes, que estavam por ali,
calados, os diabos, cá pra mim, com remorsos por aquela judiaria com o boi
velho, que os havia carregado a todos, tantas vezes, para a alegria do banho e
das guabirobas, dos araçás, das pitangas, dos guabijus! ...
- Veja vancê, que desgraçados; tão ricos. . e por um mixe
couro do boi velho! ...
Cuê-pucha! ... é mesmo bicho mau, o homem!
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Para concluir esta Tertúlia, fica a música de Palmeira e
Teddy Vieira, com o título “Couro de Boi”. A interpretação escolhida é da dupla Palmeira e Biá, que começou a gravar em 1952 e realizou a primeira gravação desta música em 1954.
Um grande abraço e até a próxima!
Wilmar Machado