A vaidade propõe, e decide logo, de sorte
que quando as coisas chegam ao entendimento já este está vencido;
o que faz é aprovar o preconceito
anterior, que a vaidade lhe introduz,
e assim quando a vaidade busca o
entendimento é só por formalidade,
e só para a defender, e autorizar, e não
para aconselhar.
(Matias Aires)
Amigas e Amigos,
Mais uma Tertúlia, este espaço para a cultura e a música de nosso País. Antes,
porém, destaco uma aparente agressão a nossa Pátria, a partir de notícias sobre
salários altíssimos de alguns – nem por isso, poucos – magistrados.
E
já não são poucos os que ocupam o noticiário por conta de salários exorbitantes,
conforme material do jornal O Estado de São Paulo (http://www.estadao.com.br), do ultimo dia
23, falando das “vantagens” eventuais (talvez nem tão eventuais) dos
magistrados do Rio de Janeiro e de São Paulo, informando que:
Os pagamentos milionários a magistrados estaduais de São Paulo se reproduzem no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A folha de subsídios do TJ-RJ mostra que desembargadores e juízes, mesmo aqueles que acabaram de ingressar na carreira, chegam a ganhar mensalmente de R$ 40 mil a R$ 150 mil. A remuneração de R$ 24.117,62 é hipertrofiada por “vantagens eventuais”. Alguns desembargadores receberam, ao longo de apenas um ano, R$ 400 mil, cada, somente em penduricalhos. A folha de pagamentos, que o próprio TJ divulgou em obediência à Resolução 102 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – norma que impõe transparência aos tribunais –, revela que em dezembro de 2010 o mais abastado dos desembargadores recebeu R$ 511.739,23. Outro magistrado recebeu naquele mês depósitos em sua conta que somaram R$ 462 mil, além do salário. Um terceiro desembargador recebeu R$ 349 mil. No total, 72 desembargadores receberam mais de R$ 100 mil, sendo que 6 tiveram rendimentos superiores a R$ 200 mil. Os supercontracheques da toga fluminense, ao contrário do que ocorre no Tribunal de Justiça de São Paulo, não são incomuns. Os dados mais recentes publicados pela corte do Rio, referentes a novembro de 2011, mostram que 107 dos 178 desembargadores receberam valores que superam com folga a casa dos R$ 50 mil.
Pois
com esses aparentes absurdos, que afrontam a maioria dos trabalhadores
brasileiros com salários que refletem o que efetivamente receberão a cada mês,
sem nenhum “recursinho” extra, a idéia que fica é ser incompatível a
aproximação de vergonha e justiça.
Essa
idéia da falta de vergonha vem com outra matéria do mesmo jornal sobre atitudes
dos desembargadores, que já são alvos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
para que sejam revistas leis que não lhes são “favoráveis”. Diz a notícia que:
Leis que disciplinam a ação e estabelecem o raio de alcance do poderoso Conselho de Controle de Atividades Financeira (Coaf) - unidade de inteligência financeira do Ministério da Fazenda que persegue fortunas ilícitas -, são o novo alvo da toga amotinada. Irritados com a abertura das contas e movimentações bancárias de todo o universo forense - 206 mil magistrados, servidores e familiares -, desembargadores da Justiça preparam o contragolpe. Eles miram precisamente a Lei 9.613/98 e a Lei Complementar 105/01 - a primeira impõe sanções à lavagem de dinheiro e criou o Coaf; a outra firma que o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários, nas áreas de suas atribuições, fornecerão ao conselho "informações cadastrais e de movimento de valores". A estratégia que pode enfraquecer o Coaf foi desencadeada pela Associação Nacional de Desembargadores (Andes). A entidade aponta inconstitucionalidade de alguns artigos do conjunto de normas que definem os limites do órgão rastreador de malfeitos pela malha bancária. [...] Razão da briga. No embate histórico que protagoniza para identificar fluxo financeiro incompatível ao contracheque de magistrados, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) teria obtido os dados pela via direta - ofício da corregedoria do CNJ foi acatado pelo Coaf, que fez a pesquisa pelos CPFs de cada personagem.
Pode-se
observar que não há qualquer preocupação com a exorbitância recebida, o que os
magistrados passam a impressão de não querer é que sejam divulgados os
vergonhosos números que poderiam não ter explicações razoáveis, o que poderia
nos lembrar das afirmações de Daniel Dantas antes de ser liberado da prisão, para
culminar nos últimos tempos com a retomada de seus bens por decisão judicial.
Lembro
aqui de uma análise dos passivos milionários do Judiciário, que revelariam
falhas nas normas, feita pelo Professor Carlos Ari Sundfeld, da Escola de
Direito de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas e Presidente da Sociedade
Brasileira do Direito Público, onde ele constata que
Autoridades resistem em divulgar informações detalhadas, precisas e claras não só sobre o que se paga ao pessoal, mas também sobre o modo como são tomadas as decisões de pagamento. É uma atitude que precisa mudar radicalmente, pois a publicidade administrativa é princípio constitucional. Há também outra razão: só a transparência permite descobrir e corrigir as falhas do sistema.
Essa
cachorrada institucional fez-me lembrar um causo gauchesco “Uma vez, um
cachorro!”, do Aparício Silva Rillo (1931-1995), um poeta, compositor,
folclorista e escritor brasileiro, nascido em Porto Alegre-RS, mas com
residência fixa em São Borja-RS, que publico abaixo.
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UMA VEZ, UM CACHORRO!
O cachorro, segundo um
adágio que os gregos já conheciam, é o melhor amigo do homem.
Os gaúchos das Missões e
Fronteira concordam. Mas explicam o porquê: é que cachorro não rouba china de
rancho, se alimenta de restos e se contenta com um simples osso de fervido.
Além do que, cuida da casa sem cobrar salário.
Pois há um cachorro
nesse causo. Grande, pêlo negro-manchado, os dengues do seu dono – um
fazendeiro de meias posses com estância nos campos de areia de São Chico de
Assis.
O cachorro esse não era
de caçar preás, como os guaipecas de sua raça; não pegava ratos (coisa para
gatos...); comia ao pé do dono e tinha lá seu pedigree. Não se misturava com os
demais da estância, só ia ao campo quando o dono o convidava com um jeito de
assobiar que só ele conhecia.
Mas bueno. Sucede que na
estância essa chega uma tarde um moço bem apessoado, vestindo pilchas de bom
pano. Montava um rosilho cabos negros e trazia um cavalo de escoteiro.
Notava-se, logo, ser gente de viajar bastante.
O dono da estância já o
esperava. Chegara-lhe um recado, um dia antes. O tal moço, das bandas de Cruz
Alta, estava a comprar bois gordos nas Missões.
– Buenas, senhores! –
saudou de cima do rosilho.
– Boleie a perna e se
chegue, amigo! O mate recém foi cevado.
Apeou-se o
forasteiro. Atou a montada pelo cabresto e dirigiu-se ao galpão de fogo.
O estancieiro de São
Chico adiantou-se. A seu lado, rente às bombachas, o cachorro. O moço
entreparou. Deu um vistaço geral no ambiente, seus olhos de gavião mouro deram
com o cachorro, que nesta altura já rosnava, mostrando o branco dos dentes.
– Seu cachorro não tem
cara de bons amigos, cidadão. Quem sabe o senhor o ata na corrente ou pede a um
peão para prendê-lo?
– Nem se preocupe,
amigo. Vá chegando no mais que eu garanto que o Negro não lhe salta. É que ele
é um pouco nervoso.
O moço deu mais dois
passos, o rebenque pendurado no pulso pelo tento do fiel. Aí o cachorro rosnou
mais forte e arrepiou o pêlo do lombo.
– Segure seu cachorro,
meu amigo. Com bicho desse porte não se brinca.
– Passe, passe no mais.
O cachorro é ensinado. A um grito meu ele se entoca no galpão. Não tenha medo.
– Prevenção não é medo,
meu amigo. No dia que eu fugir de um cachorro mando cortar os meus bagos pra
lingüiça.
– O Negro...
Não acabou o dono de terminar
o que iria dizer e o cachorro saltou sobre o moço. Este, já prevenido, quebrou
o corpo e, rápido como um bote de cruzeira, apanhou o cachorro por uma das
pernas. Foi pegá-lo e baixar-lhe o rebenque, com tanta raiva e força que o
Negro – o mimoso do patrão – mijava em arco e ganiçava como um desesperado.
Um último rebencaço
apanhou-o por entre as orelhas e, se é que cachorro desmaia, o Negro desmaiou.
Caiu como um trapo junto às botas do serrano.
O dono do cachorro
abespinhou-se.
– Mas que barbaridade,
seu! Surrar um cachorro deste jeito. Pode até ter matado o animalzinho!
– Animalzinho, é? Com um
metro de altura? Com essa boca de engolir mogango?
– Bueno, eu mando passar
salmoura no cachorro. Mas agora passe. Vamos tratar do negócio dos bois. Qual
seu nome, mesmo?
– Não interessa mais,
cidadão. Nem quero saber o seu.
Já montado, casaco
aberto para mostrar os "ferros", arrematou:
– Homem que não manda
num cachorro não merece confiança de ninguém. Faça bom proveito dos seus bois.
Deu rédeas ao rosilho e
saiu assobiando, como cruzeira na cria!
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Para fechar esta Tertúlia Nativa, a música “Faz de conta”, de Colmar Duarte, Armando
Vasquez, Valdir Santana e João Chagas Leite, com o saudoso César Passarinho, o
“Cantor Símbolo das Califórnias”..
Um grande abraço e até nossa próxima Tertúlia!