sexta-feira, 2 de março de 2012

TERTÚLIA NATIVA – ELES QUE VENHAM, "NÓIS SEMO MAIS HOMEM"


O homem citado recorda-nos os bárbaros das grandes ondas migradoras,
que matavam e depois faziam penitência,
e para os quais fazer penitência acabou por se tornar uma técnica facilitadora do assassínio.
(Sigmund Freud)



Amigas e Amigos,

O jornal O Estado de São Paulo traz uma notícia sobre a “bronca” da presidente Dilma nos militares, o que estaria levando a um endurecimento da reação das Forças Armadas ao Governo. Diz o Estadão que:
Não será fácil para os comandantes militares resolverem o imbróglio criado pela presidente Dilma Rousseff que decidiu punir todos os militares que assinaram o manifesto "Alerta à Nação - eles que venham, por aqui não passarão", que endossa as críticas a ela por não ter censurado suas ministras que pediram a revogação da lei de anistia. No novo documento os militares dizem ainda que não reconhecem a autoridade do ministro da Defesa, Celso Amorim. Inicialmente, o manifesto tinha 98 assinaturas e na quinta-feira, após terem tomando conhecimento da decisão de puni-los, o número de seguidores subiu para 235. [...] Nessa quinta-feira, 1º, o Ministério da Defesa passou o dia discutindo com que base legal os militares podem ser punidos. Nova reunião foi convocada pelo ministro Celso Amorim e os comandantes militares. Mas há divergências de como aplicar as punições. A Defesa entende que houve "ofensa à autoridade da cadeia de comando", incluindo aí a presidente Dilma e o ministro da Defesa. Amorim tem endossado esta tese e alimentado a presidente com estas informações. O ministro entende que os militares não estão emitindo opiniões na nota, mas sim atacando e criticando seus superiores hierárquicos, o que é crime, de acordo com o Estatuto dos Militares. [...] Nos comandos, há a preocupação, ainda, com o fato de que a lista de adeptos do manifesto só cresce, o que faria com que este tema virasse uma bola da neve. Há quem acredite que o assunto deva ser resolvido de uma outra forma, a partir de uma conversa da presidente com os comandante militares, diretamente, para que fosse costurada uma saída política para este imbróglio que, na avaliação da caserna, parece não ter fim, já que a determinação do Planalto é de que todos que já assinaram e que venham ainda a aderir ao manifesto sejam punidos.

         Talvez a não ocorrência de uma “guerrinha” para exercitar os músculos dos integrantes das Forças Armadas tenha levado alguns de seus integrantes a buscarem alguma forma de passar o tempo. Aí, surge uma explicação – não sei se plausível – para o manifesto, porque pouco, além disso, percebo.

Texto da ilustração acima: “Arrancaram-me o ramo de oliveira, razão de meu vôo... Quiseram impingir-me outro ramo de pseudo paz. Já descobri em meio ao dilúvio de ódio e de guerra, em maré crescente, minorias que cultivam oliveiras de verdade, símbolos fiéis da paz verdadeira.....”  D. Hélder Câmara

         Afinal, vivemos em um país onde a impunidade grassa, pois os responsáveis pela elaboração das leis são, cada vez mais e por nossa vontade, pouco afeitos a ética e moral. Em conseqüência disso, redigem pensando em oportunidades para escaparem de quaisquer penas que, porventura, lhes possam ser atribuídas.

         Em função das considerações acima, perderia força uma eventual justificativa para o manifesto amparada por receios de punições indiscriminadas contra militares. Por outro lado, não acredito que se reedite uma “caça às bruxas”, onde os militares poderiam ser considerados similares às objeto das perseguições religiosas dos séculos XVI e XVII.

         Ante o exposto, a justificativa para o manifesto poderia – situação mais preocupante – ser amparada por medos associados a atitudes, de alguns, onde os direitos individuais tenham sido agredidos. Seriam esses “alguns”, hoje, os mais injuriados com a possibilidade de revisão de uma anistia introduzida em uma lei por motivos nunca muito transparentes?

         Se a história da ditadura militar recente não tem máculas injustificáveis, não há necessidade de existir uma anistia. Se, por outro lado, essa história não for assim tão alva, o perdão em sentido amplo pode estar associado a uma grande injustiça com a própria sociedade. Logo, penso que uma volta à discussão sobre anistia poderia interessar a todos, tantos civis – preocupados com a transparência de seus governos – quanto militares – preocupados com sua imagem perante a opinião pública.

         Bravatas do tipo “eles que venham, por aqui não passarão” nada agregam a uma necessidade de entendimento entre todos os envolvidos neste enredo digno de uma produção da antiga “zona do lixo”.

         Como bravatas e militares já andam lado a lado desde muito tempo, lembrei de uma causo do professor, comunicador e tradicionalista Antônio Augusto “Nico” Fagundes, sobre uma figura impar ligada as forças revolucionárias de 1923, no Rio Grande do Sul, que publico abaixo.


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CANDINHO BICHAREDO
                                  Antônio Augusto Fagundes

Se eu falo no Candinho Bicharedo, primeiro, porque era contador de causo; segundo, porque ele peleou em 23, do lado dos Maragatos.

Mas era Maragato dos quatro costados! Quando cercaram Uruguaiana, no primeiro dia de abril de 23, ele se juntou com as forças de Honório Lemes.

         E no combate do Ibicuí da Armada, onde Flores da Cunha atacou com ímpeto enorme, matou tanta gente que os urubus fizeram cerimônia: só comiam de capitão pra cima...

Um piquete de Flores da Cunha aprisionou Candinho Bicharedo! Degola, não degola... disseram pro Flores degolar.

– Não, o Candinho Bicharedo! Que é isso! Vão tomar banho! O Candinho é uma glória aqui em Uruguaiana, aqui nesta região da Fronteira... Como é que vamos degolar?

– Mas, ele é um contador de causo! Muito mentiroso!

– Não, não, o Candinho é sagrado – disse o Flores – Dêem ele prum soldado cuidar.

O soldado ficou cuidando do Candinho. Todos os dias o Candinho ia ao ouvido do soldado:

– É, vocês passaram no Ibicuí da Armada (onde Honório Lemes ofereceu uma resistência muito grande), mas passaram porque tinham mais gente, mais arma. Nós semos muito mais homem que vocês!

 Com o passar do tempo, o soldado foi enchendo a paciência e não agüentou mais. Passou o Candinho pro cabo!

O cabo ouvia, todos os dias:

– É. Vocês passaram no Ibicuí da Armada. Mas, passaram porque tinham mais gente, mais arma. Nós semos muito mais homem que vocês!

O cabo não agüentou e passou o Candinho pro sargento. O sargento passou pro capitão. O Capitão passou prum major; dizem até que era o major Laurindo Ramos, lá do Itaqui, que não era de laçar com sovéu curto...

E ninguém mais agüentava o Candinho. Até que passaram pro próprio Flores da Cunha.

– Olha, Coronel Flor, não agüentamos mais o Candinho! Só o senhor, pra dar um jeito na vida dele!

– Mas, o que é que ele faz?

– Ele fica incomodando a gente, à roda do dia. Já estava com vontade de mandá degolá!

– Não, não e não! Me passem o Candinho. (O Dr. Flores da Cunha tinha sido intendente em Uruguaiana; comandava a Brigada do Oeste, na Fronteira da República, com o Coronel Neco Costa, aquela gente toda!).

Bueno, e pro flores o Candinho cevou o mate, mas um mate véio espumando como apojo de brasina! Alcançou o mate pro Dr. Flores, que era Coronel Provisório, mas todo mundo chamava de General. Diz o Candinho:

– Óia, General Flor, vocês passaram no Ibicuí da Armada, mas só passaram porque tinham mais gente, mais arma que nós. Nós semos muito mais homens que vocês!

E o Flores, que já sabia da história e que também não era de pelar com a unha, respondeu:

– Olhe, Candinho, tu é Maragato, não é?

– Sim, claro. Sou Maragato.

– Agora, tu vai vestir a farda azul dos meus Provisórios e botar um lenço branco no pescoço, jurar a Bandeira do lado do Governo, senão vou te mandar degolar. Tu sabe que essa indidada tá louca pra te degolar; eu é que não deixei!

Na voz da degola, o Candinho Bicharedo achou que já tava com idade de sentar praça! E sentou. Arrumaram uma farda azul pra ele. Aquele bonezinho, uma borda vermelha aqui em cima, e ataram um lenço branco bem nas pontas; mandaram o Candinho se apresentar pro Flores e bater continência.

O Candinho, travestido de Chimango, se apresentou ao Flores. Enquadrou o corpo, bateu continência. O Flores chasqueou:

– E agora, Candinho? O que tu acha do combate do Ibicuí da Armada?

O Candinho não se apertou:

– É, General. "Nós" passemos, mas só "passemos" porque "nós" tinha mais gente, mais arma. "Eles" são muito mais homens do que "nós"!!!


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         Para fechar a Tertúlia, fica a música "Décima do Candinho Bicharedo", de Knelmo Alves e Francisco Alves, interpretada na 5ª Califórnia da Canção Nativa, de Uruguaina, por Oristela Alves (melhor intérprete feminina) e Os Uruchês (melhor conjunto instrumental). E é essa interpretação que se pode ouvir abaixo.

 

         Um grande abraço e até a próxima!

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