quarta-feira, 10 de novembro de 2010

TERTÚLIA NATIVA - O mate do João Cardoso

      A Tertúlia Nativa de hoje inicia com um causo do livro “Contos Gauchescos & Lendas do Sul”, de João Simões Lopes Neto.
      Na parte inicial do livro, é apresentada um pouco da vida e obra do autor, onde é destacado que:
João Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, RS, em 9 de março de 1865, e faleceu em 14 de outubro de 1916, acometido de grave moléstia [...] Seu interesse pelo resgate da cultura gaúcha e a linguagem regionalista utilizada em suas obras levam-nos a crer que o autor faria o tipo “gaúcho tradicionalista”, porém seu biógrafos afirmam que ele jamais vestiu uma bombacha e que seus hábitos culturais eram urbanos [...] Em 1912, publicou Contos Gauchescos, obra que o notabilizou como um dos maiores escritores da literatura do Rio Grande do Sul.
      O quarto conto desse livro é sobre a oferta de um chimarrão para um visitante. O interessante da história é seu desenrolar com diálogos pitorescos, sem que o chimarrão apareça, conforme você confere abaixo:
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O MATE DO JOÃO CARDOSO


— A la fresca!... que demorou a tal fritada! Vancê reparou?

     Quando nos apeamos era a pino do meio-dia... e são três horas, largas!... Cá pra mim esta gente esperou que as franguinhas se pusessem galinhas e depois botassem, para depois apanharem os ovos e só então bater esta fritada encantada, que vai nos atrasar a troteada, obra de duas léguas... de beiço!...
      Isto até faz-me lembrar um caso... Vancê nunca ouviu falar do João Cardoso?... Não?... É pena.
      O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes; bom velho, muito estimado, mas chalrador como trinta e que dava um dente por dois dedos de prosa, e mui amigo de novidades.
      Também... naquele tempo não havia jornais, e o que se ouvia e se contava ia de boca em boca, de ouvido para ouvido. Eu, o primeiro jornal que vi na minha vida foi em Pelotas mesmo, aí por 1851.
      Pois, como dizia: não passava andante pela porta ou mais longe ou mais distante, que o velho João Cardoso não chamasse, risonho, e renitente como mosca de ramada; e aí no mais já enxotava a cachorrada, e puxando o pito de detrás da orelha, pigarreava e dizia:

— Olá! Amigo! apeie-se; descanse um pouco! Venha tomar um amargo! É um instantinho... crioulo?!

      O andante, agradecido à sorte, aceitava… menos algum ressabiado, já se vê. — Então que há de novo? (E para dentro de casa, com uma voz de trovão, ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!
      E já se botava na conversa, falava, indagava, pedia as novas, dava as que sabia; ria-se, metia opiniões, aprovava umas cousas, ficava buzina com outras...
      E o tempo ia passando. O andante olhava para o cavalo, que já tinha refrescado; olhava para o sol que subia ou descambava… e mexia o corpo para levantar-se.

— Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...

— Espere, homem! Só um instantinho! Oh! crioulo, olha esse mate!

      E retomava a chalra. Nisto o crioulo já calejado e sabido, chegava-se-lhe manhoso e cochichava-lhe no ouvido:

— Sr., não tem mais erva!…

— Traz dessa mesma! Não demores, crioulo!...

      E o tempo ia correndo, como água de sanga cheia. Outra vez o andante se aprumava:

— Seu João Cardoso, vou-me tocando… Passe bem!

— Espera, homem de Deus! É enquanto a galinha lambe a orelha!... Oh! crioulo!... olha esse mate, diabo!

      E outra vez o negro, no ouvido dele:

— Mas, senhor!… não tem mais erva!

— Traz dessa mesma, bandalho!

      E o carvão sumia-se largando sobre o paisano uma riscada do branco dos olhos, como encarnicando...
      Por fim o andante não agüentava mais e parava patrulha:

— Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo. Até a vista!

— Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!

— Não! não mande vir, obrigado! Pra volta!

— Pois sim…, porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargo neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!

      Porém o outro já dava de rédea, resolvido à retirada.
      E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e ainda teimava:

— Quando passar, apeie-se! O chimarrão, aqui, nunca se corta, está sempre pronto! Boa viagem! Se quer esperar... olhe que é um instantinho... Oh! crioulo!...

      Mas o embuçalado já tocava a trote largo.
      Os mates do João Cardoso criaram fama… A gente daquele tempo, até, quando queria dizer que uma cousa era tardia, demorada, maçante, embrulhona, dizia — está como o mate do João Cardoso!
      A verdade é que em muita casa e por muitos motivos, ainda às vezes parece-me escutar o João Cardoso, velho de guerra, repetir ao seu crioulo:

— Traz dessa mesma, diabo, que aqui o sr. tem pressa!...

— Vancê já não tem topado disso?...
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      Para que nào fique uma impressão negativa do chimarrão, vamos ouvir, encerrando a Tertúlia Nativa de hoje, Délcio Tavares, cantando "Mate da Esperança", de Albino Manique e Francisco Castilhos.



E por aqui, encerramos nossa Tertúlia Nativa desta semana. Até a próxima!


Wilmar Machado.
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Fonte: LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Porto Alegre: LPM, 1998.

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